sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Alguns poemas de Manuel Alegre



Escritor e político português, nascido em´Agueda, em 1936.
Saiba mais  aqui


O armário ou o quarto do português errante.

Quando abrires o armário tem cuidado
mais que versos falhados cartões melancolia
pode sair de repente o que não esperas
aquela cujo sol de um outro tempo
quando olha para ti ainda te mata.


Por isso tem cuidado: não abras as gavetas
talvez Deus esteja escondido
ao lado do retrato da primeira comunhão.
Não abras: pode soltar-se
o espírito
podem sair os mortos todos
as bruxas o diabo as cartas o destino
e aquela parte da tua vida que não cabe
não cabe em nenhum verso.


E se o bafo soprar?
Não abras
não abras as gavetas.


Pode sair a tua guerra
os aerogramas
as cartas escritas da cadeia
o amor o tempo as emboscadas
as longas noites de interrogatório
e também os duzentos metros livres
uma tarde de glória na Praia das Maçãs.


Este no pódio és tu.
Não queiras ver.
O que passou passou e não passou.


Deixa ficar o sol fechado no armário
o sol e a vida
não só poemas cadernos e retratos
mas também lâminas um pincel de barba
um pente
os pequenos nadas do teu quotidiano
antes do salto.
Tão inúteis agora.
Ninguém regressa à vida interrompida
mesmo que por dentro do armário
bata por vezes um coração.


Tem cuidado ao abri-lo.
Pode sair o que nunca imaginaste
um pedaço de Deus em papéis velhos
uma foto esmaecida
um amor rasgado
sabe-se lá o quê.
Alguém que não conheces
alguém que não sabes quem
alguém que aponta o teu retrato
e de repente diz: Ninguém.



Alguns poemas de Florbela Espanca


   Florbela Espanca (Vila Viçosa, 1894 - Matosinhos, 1930 )

Saiba mais aqui



Ouça Luís Represas enquanto lê o poema:

 
Ser Poeta
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
É ter de mil desejos o esplendos
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
 
É ter fome, é ter sede de infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!
 
E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma e sangue e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

 
 

Alguns poemas de Miguel Torga

Miguel Torga, (1907-1995) pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha, foi um dos mais influentes poetas e escritores portugueses do século XX. Destacou-se como poeta, contista e memorialista, mas escreveu também romances, peças de teatro e ensaios.
Saiba mais aqui
 


Depoimento

Foi na vida real como nos sonhos:
Nunca pisei um chão de segurança.
Procuro na lembrança
Um sólido caminho percorrido,
E vejo sempre um barco sacudido
Pelas ondas raivosas do destino.
Um barco inconsciente de menino,
Um barco temerário de rapaz,
E um barco de homem, que já não domino
Entre os rochedos onde se desfaz.

 
Mas o céu era belo
quando à noite o seu dono o acendia;
E era belo o sorriso da poesia,
E belo o amor, dragão insatisfeito;
E era belo não ter dentro do peito
Nem medo, nem remorsos, nem vaidade.
Por isso digo que valeu a pena
A dura realidade
Desta viagem trágico-terrena
Sempre batida pela tempestade.


quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Alguns poemas de Alexandre O'Neill





  • Alexandre O'Neill


  • Alexandre Manuel Vahía de Castro O'Neill de Bulhões foi um importante poeta do movimento surrealista português. Era descendente de irlandeses. Autodidacta, O’Neill foi um dos fundadores do Movimento Surrealista de Lisboa. Wikipédia
  • Saiba mais aqui
     
     
    Auto-retrato 

    O´Neill (Alexandre), moreno português,
    cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
    nariguete que sobrepuja de través
    a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
    Se a visagem de tal sujeito é o que vês
    (omita-se o olho triste e a testa iluminada)
    o retrato moral também tem os seus quês
    (aqui, uma pequena frase censurada…)
    No amor? No amor crê (ou não fosse ele O´Neill!)
    e tem a veleidade de o saber fazer
    (pois amor não há feito) das maneiras mil
    que são a semovente estátua do prazer.
    ...........Mas sofre de ternura, bebe de mais e ri-se
    ...........do que neste soneto sobre si mesmo disse…

    caixadòculos
    - Patriazinha iletrada, que sabes tu de mim?
    - Que és o esticalarica que se vê.
    - Público em geral, acaso o meu nome...
    - Vai mas é vender banha de cobra!
    - Lisboa, meu berço, tu que me conheces...
    - Este é dos fala sozinho na rua...
    - Campdòrique, então, não dizes nada?
    - Ai tão silvatávares que ele vem hoje!
    - Rua do Jasmim, anda, diz que sim!
    -É o do terceiro, nunca tem dinheiro...
    - Ó Gaspar Simões, conte-lhes Você...
    - Dos dois ou três nomes que o surrealismo...
    - Ah, agora sim, fazem-me justiça!
    - Olha o caixadòclos todo satisfeito
    a ler as notícias...




    segunda-feira, 30 de setembro de 2013

    O Portugal Futuro

    O portugal futuro é um país
    aonde o puro pássaro é possível
    e sobre o leito negro do asfalto da estrada
    as profundas crianças desenharão a giz
    esse peixe da infância que vem na enxurrada
    e me parece que se chama sável

    Mas desenhem elas o que desenharem
    é essa a forma do meu país
    e chamem elas o que lhe chamarem
    portugal será e lá serei feliz
    Poderá ser pequeno como este
    ter a oeste o mar e a espanha a leste
    tudo nele será novo desde os ramos à raiz
    À sombra dos plátanos as crianças dançarão
    e na avenida que houver à beira-mar
    pode o tempo mudar será verão
    Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
    mas isso era o passado e podia ser duro
    edificar sobre ele o portugal futuro



    Ruy Belo

    Na praia lá da Boa Nova

    Na praia lá da Boa Nova, um dia,
    Edifiquei (foi esse o grande mal)
    Alto Castelo, o que é a fantasia,
    Todo de lápis-lazúli e coral!

    Naquelas redondezas não havia
    Quem se gabasse dum domínio igual:
    Oh Castelo tão alto! parecia
    O território dum Senhor feudal!


    Um dia (não sei quando, nem sei donde)
    Um vento seco de mau sestro e spleen
    Deitou por terra, ao pó que tudo esconde,


    O meu condado, o meu condado, sim!
    Porque eu já fui um poderoso Conde,
    Naquela idade em que se é conde assim...




    António Nobre

    Portugal

    PORTUGAL


    Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
    linda vista para o mar,
    Minho verde, Algarve de cal,
    jerico rapando o espinhaço da terra,
    surdo e miudinho,
    moinho a braços com um vento
    testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
    se fosses só o sal, o sol, o sul,
    o ladino pardal,
    o manso boi coloquial,
    a rechinante sardinha,
    a desancada varina,
    o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
    a muda queixa amendoada
    duns olhos pestanítidos,
    se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
    o ferrugento cão asmático das praias,
    o grilo engaiolado, a grila no lábio,
    o calendário na parede, o emblema na lapela,
    ó Portugal, se fosses só três sílabas
    de plástico, que era mais barato!


    *

    Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
    rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
    não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço,
    galo que cante a cores na minha prateleira,
    alvura arrendada para o meu devaneio,
    bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
    Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
    golpe até ao osso, fome sem entretém,
    perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
    rocim engraxado,
    feira cabisbaixa,
    meu remorso,
    meu remorso de todos nós...


    Alexandre O'Neill

    E por vezes

    E por vezes

    E por vezes as noites duram meses
    E por vezes os meses oceanos
    E por vezes os braços que apertamos
    nunca mais são os mesmos E por vezes


    encontramos de nós em poucos meses
    o que a noite nos fez em muitos anos
    E por vezes fingimos que lembramos
    E por vezes lembramos que por vezes


    ao tomarmos o gosto aos oceanos
    só o sarro das noites não dos meses
    lá no fundo dos copos encontramos


    E por vezes sorrimos ou choramos
    E por vezes por vezes ah por vezes
    num segundo se evolam tantos anos


       David Mourão Ferreira

    Verdade

    Verdade

    A porta da verdade estava aberta,
    mas só deixava passar
    meia pessoa de cada vez.

    Assim não era possível atingir toda a verdade,
    porque a meia pessoa que entrava
    só trazia o perfil de meia verdade.
    E sua segunda metade
    voltava igualmente com meio perfil.
    E os meios perfis não coincidiam.

    Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
    Chegaram ao lugar luminoso
    onde a verdade esplendia seus fogos.
    Era dividida em metades
    diferentes uma da outra.

    Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
    Nenhuma das duas era totalmente bela.
    E carecia optar. Cada um optou conforme
    seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
     
    Carlos Drummond de Andrade

    Poema de um funcionário cansado

    Poema dum funcionário cansado


    
    A noite trocou-me os sonhos e as mãos
    dispersou-me os amigos
    tenho o coração confundido e a rua é estreita
    estreita em cada passo
    as casas engolem-nos
    sumimo-nos
    estou num quarto só num quarto só
    com os sonhos trocados
    com toda a vida às avessas a arder num quarto só
    Sou um funcionário apagado
    um funcionário triste
    a minha alma não acompanha a minha mão
    Débito e Crédito Débito e Crédito
    a minha alma não dança com os números
    tento escondê-la envergonhado
    o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
    e debitou-me na minha conta de empregado
    Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
    Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
    Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
    Soletro velhas palavras generosas
    Flor rapariga amigo menino
    irmão beijo namorada 
    mãe estrela música
    São as palavras cruzadas do meu sonho
    palavras soterradas na prisão da minha vida
    isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
    num quarto só
    

    António Ramos Rosa

    Rapariga descalça

    Chove. Uma rapariga desce a rua.
    Os seus pés descalços são formosos.
    São formosos e leves: o corpo alto
    parte dali, e nunca se desprende.
     
    A chuva em Abril tem o sabor do sol:
    cada gota recente canta na folhagem,
    O dia é um jogo inocente de luzes,
    de crianças ou beijos, de fragatas.
    Uma gaivota passa nos meus olhos.
    E a rapariga - os seus formosos pés -
    canta, corre, voa, é brisa, ao ver
    o mar tão próximo e tão branco
     
                  Eugénio de Andrade

    Amo-te muito, meu amor

    Amo-te Muito, Meu Amor, e Tanto

    Amo-te muito, meu amor, e tanto
    que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda
    depois de ter-te, meu amor. Não finda
    com o próprio amor o amor do teu encanto.

    Que encanto é o teu? Se continua enquanto
    sofro a traição dos que, viscosos, prendem,
    por uma paz da guerra a que se vendem,
    a pura liberdade do meu canto,

    um cântico da terra e do seu povo,
    nesta invenção da humanidade inteira
    que a cada instante há que inventar de novo,

    tão quase é coisa ou sucessão que passa...
    Que encanto é o teu? Deitado à tua beira,
    sei que se rasga, eterno, o véu da Graça.

    Jorge de Sena, in “Poesia, Vol. I”


    Poema épico


    Poema épico

    O rapagão da camisola vermelha sacode a melena da testa
    e retesa os braços num bocejo como um jovem leão voluptuoso.
    Dorme a sesta
    o involuntário ocioso.

    A filha do alfaiate atirou a tesoura e o dedal pela janela
    e sumiu-se na noite escura do mundo.
    Quis respirar mais fundo
    e isso de ser coitada é lá com ela.

    O homem da barba por fazer conta os filhos e as moedas
    e balbucia qualquer coisa num tom inexpressivo e roufelho.
    Súbito chamejam-lhe os olhos como labaredas;
    - Eu já venho!

    O da face doente,
    o que sofre por tudo e por nada, sem querer,
    abana a cabeça negativamente:
    - Isto não pode ser! Isto não pode ser!

    Sentados às soleiras das portas,
    mordendo a língua na tarefa inglória,
    com letras gordas e por linhas tortas
    vão redigindo a História.


                           António Gedeão

    Depoimento

    DEPOIMENTO


    Foi na vida real como nos sonhos:
    Nunca pisei um chão de segurança.
    Procuro na lembrança
    Um sólido caminho percorrido,
    E vejo sempre um barco sacudido
    Pelas ondas raivosas do destino.
    Um barco inconsciente de menino,
    Um barco temerário de rapaz,
    E um barco de homem, que já não domino,
    Entre os rochedos onde se desfaz.


    Mas o céu era belo
    Quando à noite o seu dono o acendia;
    E era belo o sorriso da poesia,
    E belo o amor, dragão insatisfeito;
    E era belo não ter dentro do peito
    Nem medo, nem remorso, nem vaidade.
    Por isso digo que valeu a pena
    A dura realidade
    Desta viagem trágico-terrena
    Sempre batida pela tempestade.

       Miguel Torga

    Sísifo

    Recomeça…
    Se puderes,
    Sem angústia e sem pressa.
    E os passos que deres,
    Nesse caminho duro
    Do futuro,
    Dá-os em liberdade.
    Enquanto não alcances
    Não descanses.
    De nenhum fruto queiras só metade.


    E, nunca saciado,
    Vai colhendo
    Ilusões sucessivas no pomar
    E vendo
    Acordado,
    O logro da aventura.
    És homem, não te esqueças!
    Só é tua a loucura
    Onde, com lucidez, te reconheças.


    Miguel Torga, Diário XIII

    Vai-te, poesia


    Vai-te, Poesia!

    Deixa-me ver friamente
    a realidade nua
    sem ninfas de iludir
    ou violinos de lua.


    Vai-te, Poesia!

    Não transformes o mundo
    descarnado e terrível
    num céu de esquecer
    com mendigos de nuvens
    famintos de estrelas
    e feridas a cheirarem a cravos
    — enquanto os outros, os der carne verdadeira,
    uivam em vão
    a sua fome de cadelas
    e de pão.


    Vai-te, Poesia!

    Deixa-me ver a vida
    exacta e intolerável
    neste planeta feito de carne humana a chorar
    onde um anjo me arrasta todas as noites para casa pelos
    cabelos
    com bandeiras de lume nos olhos,
    para fabricar sonhos
    carregados de dinamite de lágrimas.


    Vai-te, Poesia!

    Não quero cantar.
    Quero gritar!



    José Gomes Ferreira

    Cântico Negro

    "Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
    Estendendo-me os braços, e seguros
    De que seria bom que eu os ouvisse
    Quando me dizem: "vem por aqui!"
    Eu olho-os com olhos lassos,
    (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
    E cruzo os braços,
    E nunca vou por ali...
    A minha glória é esta:
    Criar desumanidades!
    Não acompanhar ninguém.
    — Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
    Com que rasguei o ventre à minha mãe
    Não, não vou por aí! Só vou por onde
    Me levam meus próprios passos...
    Se ao que busco saber nenhum de vós responde
    Por que me repetis: "vem por aqui!"?
    Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
    Redemoinhar aos ventos,
    Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
    A ir por aí...
    Se vim ao mundo, foi
    Só para desflorar florestas virgens,
    E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
    O mais que faço não vale nada.

    Como, pois, sereis vós
    Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
    Para eu derrubar os meus obstáculos?...
    Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
    E vós amais o que é fácil!
    Eu amo o Longe e a Miragem,
    Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

    Ide! Tendes estradas,
    Tendes jardins, tendes canteiros,
    Tendes pátria, tendes tetos,
    E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
    Eu tenho a minha Loucura !
    Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
    E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
    Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
    Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
    Mas eu, que nunca principio nem acabo,
    Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

    Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
    Ninguém me peça definições!
    Ninguém me diga: "vem por aqui"!
    A minha vida é um vendaval que se soltou,
    É uma onda que se alevantou,
    É um átomo a mais que se animou...
    Não sei por onde vou,
    Não sei para onde vou
    Sei que não vou por aí!

                     José Régio

    Palavras para a minha mãe

    Palavras para a Minha Mãe

    mãe,  tenho pena. esperei sempre que entendesses
    as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz.
    sei hoje que apenas esperei, mãe, e esperar não é suficiente.

    pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste
    tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te
    desculpa, mãe, e sei que pedir desculpa não é suficiente.

    às vezes, quero dizer-te tantas coisas que não consigo,
    a fotografia em que estou ao teu colo é a fotografia
    mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz.

    lê isto: mãe, amo-te.

    eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que não
    escrevi estas palavras, sim, mãe, hei-de fingir que
    não escrevi estas palavras, e tu hás-de fingir que não
    as leste, somos assim, mãe, mas eu sei e tu sabes
    .

    José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"




    sexta-feira, 27 de setembro de 2013

    Era um sonho?


    Era um sonho?

    Eram lobos, grilos, corvos,
    tartarugas, raposões,
    bichas de sete cabeças,
    unicórnios e dragões,
    dromedários e chacais
    e outros bichos que tais.
    Eram fadas, bruxas, príncipes,
    ogres, fantasmas, meninos,
    labirintos e palácios,
    minas, grutas e florestas.
    Eram ilhas e desertos,
    cidades do faroeste,
    gelos eternos e selvas
    e pirâmides do Egipto.
    Mas também havia escolas,
    casas ricas, bairros pobres,
    esquadras, polícias, ladrões
    e gente de muitas nações.
    Viajei em aviões,
    navios e foguetões,
    em botas de sete léguas
    e tapetes voadores.
    Naveguei em caravelas,
    desenterrei um tesouro,
    naufraguei nos mares do sul,
    vi escravos agrilhoados,
    lutei com piratas, vilões
    entre pragas, maldições.
    Vi o Pinóquio e a Alice,
    o Polegarzinho, o Ulisses,
    o Simbad e o Ali Babá,
    Cinderela, Peter Pan,
    Iracema e Iratan,
    o lindo Palhaço Verde,
    a gorda Dona Redonda,
    e a fina Salta-Pocinhas.
    Vi a Emília e o Visconde,
    Dona Benta, Narizinho, Capuchinho e a avozinha,
    o Tom Sawyer, o Jim Hawkins
    e a muleta de John Silver
    Quando o sonho terminou
    e as pálpebras abri,
    tinha ao meu lado uma estante
    com todos os livros que li.

    João Pedro Mésseder

    Um livro


    Um livro

    Levou-me um livro em viagem
    não sei por onde é que andei
    Corri o Alasca, o deserto
    andei com o sultão no Brunei?
    P’ra falar verdade, não sei


    Com um livro cruzei o mar,
    não sei com quem naveguei.
    Com marinheiros, corsários,
    tremendo de febres e medo?
    P’ra falar verdade não sei.


    Um livro levou-me p’ra longe
    não sei por onde é que andei.
    Por cidades devastadas
    no meio da fome e da guerra?
    P’ra falar verdade não sei.


    Um livro levou-me com ele
    até ao coração de alguém
    E aí me enamorei -
    de uns olhos ou de uns cabelos?
    P’ra falar verdade não sei.


    Um livro num passe de mágica
    tocou-me com o seu feitiço:
    Deu-me a paz e deu-me a guerra,
    mostrou-me as faces do homem
    – porque um livro é tudo isso.


    Levou-me um livro com ele
    pelo mundo a passear
    Não me perdi nem me achei
    – porque um livro é afinal…
    um pouco da vida, bem sei.


    João Pedro Mésseder

    Café do molhe


    Café do molhe


    Perguntavas-me
    (ou talvez não tenhas sido
    tu, mas só a ti
    naquele tempo eu ouvia)

    porquê a poesia,
    e não outra coisa qualquer:
    a filosofia, o futebol, alguma mulher?
    Eu não sabia

    que a resposta estava
    numa certa estrofe de
    um certo poema de
    Frei Luis de Léon que Poe

    (acho que era Poe)
    conhecia de cor,
    em castelhano e tudo.
    Porém se o soubesse

    de pouco me teria
    então servido, ou de nada.
    Porque estavas inclinada
    de um modo tão perfeito

    sobre a mesa
    e o meu coração batia
    tão infundadamente no teu peito
    sob a tua blusa acesa

    que tudo o que soubesse não o saberia.
    Hoje sei: escrevo
    contra aquilo de que me lembro,
    essa tarde parada, por exemplo.
                          

                             Manuel António Pina

    Poema à mãe


    POEMA À MÃE

    No mais fundo de ti
    Eu sei que te traí, mãe.

    Tudo porque já não sou
    O menino adormecido
    No fundo dos teus olhos.

    Tudo porque ignoras
    Que há leitos onde o frio não se demora
    E noites rumorosas de águas matinais.

    Por isso, às vezes, as palavras que te digo
    São duras, mãe,
    E o nosso amor é infeliz.

    Tudo porque perdi as rosas brancas
    Que apertava junto ao coração
    No retrato da moldura.

    Se soubesses como ainda amo as rosas,
    Talvez não enchesses as horas de pesadelos.

    Mas tu esqueceste muita coisa;
    Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
    Que todo o meu corpo cresceu,
    E até o meu coração
    Ficou enorme, mãe!

    Olha - queres ouvir-me? -
    Às vezes ainda sou o menino
    Que adormeceu nos teus olhos;

    Ainda aperto contra o coração
    Rosas tão brancas
    Como as que tens na moldura;

    Ainda oiço a tua voz:
    Era uma vez uma princesa
    No meio do laranjal...

    Mas - tu sabes - a noite é enorme,
    E todo o meu corpo cresceu.
    Eu saí da moldura,
    Dei às aves os meus olhos a beber.

    Não me esqueci de nada, mãe.
    Guardo a tua voz dentro de mim.
    E deixo as rosas.

    Boa noite. Eu vou com as aves.

    Eugénio de Andrade, Os Amantes sem Dinheiro

    Quando eu nasci


    QUANDO EU NASCI

    Quando eu nasci,
    ficou tudo como estava,
    Nem homens cortaram veias,
    nem o Sol escureceu,
    nem houve Estrelas a mais…
    Somente,
    esquecida das dores,
    a minha Mãe sorriu e agradeceu.


    Quando eu nasci,
    não houve nada de novo
    senão eu.


    As nuvens não se espantaram,
    não enlouqueceu ninguém…


    P’ra que o dia fosse enorme,
    bastava
    toda a ternura que olhava
    nos olhos de minha Mãe…


    José Régio

    Soneto da Fidelidade


    SONETO DA FIDELIDADE

    De tudo, meu amor serei atento
    Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
    Que mesmo em face do maior encanto
    Dele se encante mais meu pensamento.


    Quero vivê-lo em cada vão momento
    E em seu louvor hei de espalhar meu canto
    E rir meu riso e derramar meu pranto
    Ao seu pesar ou seu contentamento.


    E assim, quando mais tarde me procure
    Quem sabe a morte, angústia de quem vive
    Quem sabe a solidão, fim de quem ama


    Eu possa me dizer do amor ( que tive ) :
    Que não seja imortal, posto que é chama
    Mas que seja infinito enquanto dure.
                                                Vinícius de Morais

    Um poema


    UM POEMA

    Não tenhas medo, ouve:
    É um poema
    Um misto de oração e de feitiço...
    Sem qualquer compromisso,
    Ouve-o atentamente,
    De coração lavado.
    Poderás decorá-lo
    E rezá-lo
    Ao deitar
    Ao levantar,
    Ou nas restantes horas de tristeza.
    Na segura certeza
    De que mal não te faz.
    E pode acontecer que te dê paz...

    Miguel Torga, Diário XIII

    O sonho


    O SONHO

    Pelo sonho é que vamos,
    Comovidos e mudos.
    Chegamos? Não chegamos?
    Haja ou não frutos,
    Pelo Sonho é que vamos.

    Basta a fé no que temos.
    Basta a esperança naquilo
    Que talvez não teremos.
    Basta que a alma demos,
    Com a mesma alegria, ao que é do dia-a-dia.

    Chegamos? Não chegamos?

    -Partimos. Vamos. Somos.

     

    Sebastião da Gama, Pelo Sonho é que Vamos

    Só por isso


    Mesmo que a noite esteja escura,
    Ou por isso,
    Quero acender a minha estrela.

    Mesmo que o mar esteja morto,
    Ou por isso,
    Quero enfunar a minha vela.

    Mesmo que a vida esteja nua,
    Ou por isso,
    Quero vestir-lhe o meu poema.

    Só porque tu existes,
    Vale a pena!

               Lopes Morgado, Mulher Mãe

    Fala do astronauta ao velho do Restelo


    Aqui, na Terra, a fome continua,
    A miséria, o luto, e outra vez a fome.

    Acendemos cigarros em fogos de napalme
    E dizemos amor sem saber o que seja.
    Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
    E também da pobreza, e da fome outra vez.
    E pusemos em ti sei lá bem que desejo
    De mais alto que nós, e melhor e mais puro.

    No jornal, de olhos tensos, soletramos
    As vertigens do espaço e maravilhas:
    Oceanos salgados que circundam
    Ilhas mortas de sede, onde não chove.

    Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
    Onde come, brincando, só a fome,
    Só a fome, astronauta, só a fome,
    E são brinquedos as bombas de napalme.
    Fala do velho do Restelo ao astronauta, José Saramago - Os Poemas Possíveis

    Abaixo o mistério da poesia


    Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
    E um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
    Para ver quem é,
    Enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
    E correr pelos interstícios das pedras, pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;

    Enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
    Órfãos de pais e mães,
    Andarem acossados pelas ruas
    Como matilhas de cães;

    Enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
    Com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
    Num silêncio de espanto
    Rasgado pelo grito da sereia estridente;

    Enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
    Cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
    Amassando na mesma lama de extermínio
    Os ossos dos homens e as traves das suas casas;

    Enquanto tudo isso acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade,
    Enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
    O poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:

    ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA,António Gedeão

    quinta-feira, 26 de setembro de 2013

    Mal nos conhecemos
    Inauguramos a palavra amigo!

    Amigo é um sorriso
    De boca em boca,
    Um olhar bem limpo

    Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
    Um coração pronto a pulsar
    Na nossa mão!

    Amigo (recordam-se, vocês aí,
    Escrupulosos detritos?)
    Amigo é o contrário de inimigo!


    Amigo é o erro corrigido,
    Não o erro perseguido, explorado.
    É a verdade partilhada, praticada.

    Amigo é a solidão derrotada!

    Amigo é uma grande tarefa,
    Um trabalho sem fim,
    Um espaço útil, um tempo fértil,
    Amigo vai ser, é já uma grande festa!


                      Alexandre o'Neil

    Pedra Filosofal

    Pedra Filosofal

    Eles não sabem que o sonho
    é uma constante da vida
    tão concreta e definida
    como outra coisa qualquer,
    como esta pedra cinzenta
    em que me sento e descanso,
    como este ribeiro manso
    em serenos sobressaltos,
    como estes pinheiros altos
    que em verde e oiro se agitam,
    como estas aves que gritam
    em bebedeiras de azul.

    Eles não sabem que o sonho
    é vinho, é espuma, é fermento,
    bichinho álacre e sedento,
    de focinho pontiagudo,
    que fossa através de tudo
    num perpétuo movimento.

    Eles não sabem que o sonho
    é tela, é cor, é pincel,
    base, fuste, capitel,
    arco em ogiva, vitral,
    pináculo de catedral,
    contraponto, sinfonia,
    máscara grega, magia,
    que é retorta de alquimista,
    mapa do mundo distante,
    rosa-dos-ventos, Infante,
    caravela quinhentista,
    que é Cabo da Boa Esperança,
    ouro, canela, marfim,
    florete de espadachim,
    bastidor, passo de dança,
    Colombina e Arlequim,
    passarola voadora,
    pára-raios, locomotiva,
    barco de proa festiva,
    alto-forno, geradora,
    cisão do átomo, radar,
    ultra-som, televisão,
    desembarque em foguetão
    na superfície lunar.

    Eles não sabem, nem sonham,
    que o sonho comanda a vida.
    Que sempre que um homem sonha
    o mundo pula e avança
    como bola colorida
    entre as mãos de uma criança.


           António Gedeão

    Não posso adiar o amor

    Não posso adiar o amor

    Não posso adiar o amor para outro século
    não posso
    ainda que o grito sufoque na garganta
    ainda que o ódio estale e crepite e arda
    sob as montanhas cinzentas
    e montanhas cinzentas

    Não posso adiar este braço
    que é uma arma de dois gumes amor e ódio

    Não posso adiar
    ainda que a noite pese séculos sobre as costas
    e a aurora indecisa demore
    não posso adiar para outro século a minha vida
    nem o meu amor
    nem o meu grito de libertação

    Não posso adiar o coração.


    António Ramos Rosa

    Paisagem

    Paisagem
    Passavam pelo ar aves repentinas,
    O cheiro da terra era fundo e amargo,
    E ao longe as cavalgadas do mar largo
    Sacudiam na areia as suas crinas.
    
    Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,
    Era a carne das árvores elástica e dura,
    Eram as gotas de sangue da resina
    E as folhas em que a luz se descombina.
    
    Eram os caminhos num ir lento,
    Eram as mãos profundas do vento
    Era o livre e luminoso chamamento
    Da asa dos espaços fugitiva.
    
    Eram os pinheirais onde o céu poisa,
    Era o peso e era a cor de cada coisa,
    A sua quietude, secretamente viva,
    E a sua exalação afirmativa.
    
    Era a verdade e a força do mar largo,
    Cuja voz, quando se quebra, sobe,
    Era o regresso sem fim e a claridade
    Das praias onde a direito o vento corre.
    
    
    
    Sophia de Mello Breyner Andresen
    

    Para atravessar contigo o deserto do mundo

    Para atravessar contigo o deserto do mundo
    Para atravessar contigo o deserto do mundo
    Para enfrentarmos juntos o terror da morte
    Para ver a verdade para perder o medo
    Ao lado dos teus passos caminhei
    
    Por ti deixei meu reino meu segredo
    Minha rápida noite meu silêncio
    Minha pérola redonda e seu oriente
    Meu espelho minha vida minha imagem
    E abandonei os jardins do paraíso
    
    Cá fora à luz sem véu do dia duro
    Sem os espelhos vi que estava nua
    E ao descampado se chamava tempo
    
    Por isso com teus gestos me vestiste
    E aprendi a viver em pleno vento
    
    
    
    Sophia de Mello Breyner Andresen 
    

    Fundo do mar

    Fundo do mar
    No fundo do mar há brancos pavores,
    Onde as plantas são animais
    E os animais são flores.
    
    Mundo silencioso que não atinge
    A agitação das ondas.
    Abrem-se rindo conchas redondas,
    Baloiça o cavalo-marinho.
    Um polvo avança
    No desalinho
    Dos seus mil braços,
    Uma flor dança,
    Sem ruído vibram os espaços.
    
    Sobre a areia o tempo poisa
    Leve como um lenço.
    
    Mas por mais bela que seja cada coisa
    Tem um monstro em si suspenso.
    
    
    
    Sophia de Mello Breyner Andresen

    Porque


    Porque
    Porque os outros se mascaram mas tu não 
    Porque os outros usam a virtude 
    Para comprar o que não tem perdão. 
    Porque os outros têm medo mas tu não. 
    Porque os outros são os túmulos caiados 
    Onde germina calada a podridão. 
    Porque os outros se calam mas tu não. 
    Porque os outros se compram e se vendem 
    E os seus gestos dão sempre dividendo. 
    Porque os outros são hábeis mas tu não. 
    Porque os outros vão à sombra dos abrigos 
    E tu vais de mãos dadas com os perigos. 
    Porque os outros calculam mas tu não. 
    
    
    
    Sophia de Mello Breyner Andresen