sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Alguns poemas de Manuel Alegre



Escritor e político português, nascido em´Agueda, em 1936.
Saiba mais  aqui


O armário ou o quarto do português errante.

Quando abrires o armário tem cuidado
mais que versos falhados cartões melancolia
pode sair de repente o que não esperas
aquela cujo sol de um outro tempo
quando olha para ti ainda te mata.


Por isso tem cuidado: não abras as gavetas
talvez Deus esteja escondido
ao lado do retrato da primeira comunhão.
Não abras: pode soltar-se
o espírito
podem sair os mortos todos
as bruxas o diabo as cartas o destino
e aquela parte da tua vida que não cabe
não cabe em nenhum verso.


E se o bafo soprar?
Não abras
não abras as gavetas.


Pode sair a tua guerra
os aerogramas
as cartas escritas da cadeia
o amor o tempo as emboscadas
as longas noites de interrogatório
e também os duzentos metros livres
uma tarde de glória na Praia das Maçãs.


Este no pódio és tu.
Não queiras ver.
O que passou passou e não passou.


Deixa ficar o sol fechado no armário
o sol e a vida
não só poemas cadernos e retratos
mas também lâminas um pincel de barba
um pente
os pequenos nadas do teu quotidiano
antes do salto.
Tão inúteis agora.
Ninguém regressa à vida interrompida
mesmo que por dentro do armário
bata por vezes um coração.


Tem cuidado ao abri-lo.
Pode sair o que nunca imaginaste
um pedaço de Deus em papéis velhos
uma foto esmaecida
um amor rasgado
sabe-se lá o quê.
Alguém que não conheces
alguém que não sabes quem
alguém que aponta o teu retrato
e de repente diz: Ninguém.



Alguns poemas de Florbela Espanca


   Florbela Espanca (Vila Viçosa, 1894 - Matosinhos, 1930 )

Saiba mais aqui



Ouça Luís Represas enquanto lê o poema:

 
Ser Poeta
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
É ter de mil desejos o esplendos
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
 
É ter fome, é ter sede de infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!
 
E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma e sangue e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

 
 

Alguns poemas de Miguel Torga

Miguel Torga, (1907-1995) pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha, foi um dos mais influentes poetas e escritores portugueses do século XX. Destacou-se como poeta, contista e memorialista, mas escreveu também romances, peças de teatro e ensaios.
Saiba mais aqui
 


Depoimento

Foi na vida real como nos sonhos:
Nunca pisei um chão de segurança.
Procuro na lembrança
Um sólido caminho percorrido,
E vejo sempre um barco sacudido
Pelas ondas raivosas do destino.
Um barco inconsciente de menino,
Um barco temerário de rapaz,
E um barco de homem, que já não domino
Entre os rochedos onde se desfaz.

 
Mas o céu era belo
quando à noite o seu dono o acendia;
E era belo o sorriso da poesia,
E belo o amor, dragão insatisfeito;
E era belo não ter dentro do peito
Nem medo, nem remorsos, nem vaidade.
Por isso digo que valeu a pena
A dura realidade
Desta viagem trágico-terrena
Sempre batida pela tempestade.


quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Alguns poemas de Alexandre O'Neill





  • Alexandre O'Neill


  • Alexandre Manuel Vahía de Castro O'Neill de Bulhões foi um importante poeta do movimento surrealista português. Era descendente de irlandeses. Autodidacta, O’Neill foi um dos fundadores do Movimento Surrealista de Lisboa. Wikipédia
  • Saiba mais aqui
     
     
    Auto-retrato 

    O´Neill (Alexandre), moreno português,
    cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
    nariguete que sobrepuja de través
    a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
    Se a visagem de tal sujeito é o que vês
    (omita-se o olho triste e a testa iluminada)
    o retrato moral também tem os seus quês
    (aqui, uma pequena frase censurada…)
    No amor? No amor crê (ou não fosse ele O´Neill!)
    e tem a veleidade de o saber fazer
    (pois amor não há feito) das maneiras mil
    que são a semovente estátua do prazer.
    ...........Mas sofre de ternura, bebe de mais e ri-se
    ...........do que neste soneto sobre si mesmo disse…

    caixadòculos
    - Patriazinha iletrada, que sabes tu de mim?
    - Que és o esticalarica que se vê.
    - Público em geral, acaso o meu nome...
    - Vai mas é vender banha de cobra!
    - Lisboa, meu berço, tu que me conheces...
    - Este é dos fala sozinho na rua...
    - Campdòrique, então, não dizes nada?
    - Ai tão silvatávares que ele vem hoje!
    - Rua do Jasmim, anda, diz que sim!
    -É o do terceiro, nunca tem dinheiro...
    - Ó Gaspar Simões, conte-lhes Você...
    - Dos dois ou três nomes que o surrealismo...
    - Ah, agora sim, fazem-me justiça!
    - Olha o caixadòclos todo satisfeito
    a ler as notícias...




    segunda-feira, 30 de setembro de 2013

    O Portugal Futuro

    O portugal futuro é um país
    aonde o puro pássaro é possível
    e sobre o leito negro do asfalto da estrada
    as profundas crianças desenharão a giz
    esse peixe da infância que vem na enxurrada
    e me parece que se chama sável

    Mas desenhem elas o que desenharem
    é essa a forma do meu país
    e chamem elas o que lhe chamarem
    portugal será e lá serei feliz
    Poderá ser pequeno como este
    ter a oeste o mar e a espanha a leste
    tudo nele será novo desde os ramos à raiz
    À sombra dos plátanos as crianças dançarão
    e na avenida que houver à beira-mar
    pode o tempo mudar será verão
    Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
    mas isso era o passado e podia ser duro
    edificar sobre ele o portugal futuro



    Ruy Belo

    Na praia lá da Boa Nova

    Na praia lá da Boa Nova, um dia,
    Edifiquei (foi esse o grande mal)
    Alto Castelo, o que é a fantasia,
    Todo de lápis-lazúli e coral!

    Naquelas redondezas não havia
    Quem se gabasse dum domínio igual:
    Oh Castelo tão alto! parecia
    O território dum Senhor feudal!


    Um dia (não sei quando, nem sei donde)
    Um vento seco de mau sestro e spleen
    Deitou por terra, ao pó que tudo esconde,


    O meu condado, o meu condado, sim!
    Porque eu já fui um poderoso Conde,
    Naquela idade em que se é conde assim...




    António Nobre

    Portugal

    PORTUGAL


    Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
    linda vista para o mar,
    Minho verde, Algarve de cal,
    jerico rapando o espinhaço da terra,
    surdo e miudinho,
    moinho a braços com um vento
    testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
    se fosses só o sal, o sol, o sul,
    o ladino pardal,
    o manso boi coloquial,
    a rechinante sardinha,
    a desancada varina,
    o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
    a muda queixa amendoada
    duns olhos pestanítidos,
    se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
    o ferrugento cão asmático das praias,
    o grilo engaiolado, a grila no lábio,
    o calendário na parede, o emblema na lapela,
    ó Portugal, se fosses só três sílabas
    de plástico, que era mais barato!


    *

    Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
    rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
    não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço,
    galo que cante a cores na minha prateleira,
    alvura arrendada para o meu devaneio,
    bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
    Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
    golpe até ao osso, fome sem entretém,
    perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
    rocim engraxado,
    feira cabisbaixa,
    meu remorso,
    meu remorso de todos nós...


    Alexandre O'Neill